Resenha – Arkham Horror: The card game

“Vivemos em uma ilha plácida de ignorância em meio a mares sombrios de infinitude, e não deveríamos velejar para longe.”  H. P. Lovecraft, “O Chamado de Cthulhu”

Arkham, Massachusetts, 18 de outubro de 1923. Os sinais são claros. Algo sinistro está acontecendo, escondido nos becos, oculto pela tênue luz da lua. Os cânticos ficam mais altos, o odor das velas mais intenso, a noite mais escura. Só nos resta investigar, procurar pistas, impedir que o plano dos Anciões seja completado. Ou será nosso fim.

Essa premissa é padrão na franquia Arkham Horror Files, criada pela Fantasy Flight Games para abrigar jogos dos mais diversos tipos – boardgames, cardgames, dungeon crawlers. Alguns deles chegaram ao Brasil através da Galápagos jogos: Eldritch Horror, Elder Sign e futuramente Mansions of Madness segunda edição.

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Arkham Horror: The Card Game (ou Arkham LCG) é a mais nova adição à família. Trata-se de um cardgame cooperativo criado por Nate French e Matthew Newman, no qual cada jogador representa um investigador (dentre personagens já conhecidos da franquia) que se envolve com os Mitos criados por H. P. Lovecraft e conhecidos coletivamente como “Mitos de Cthulhu”. Ele chega para ocupar o lugar de Call of Cthulhu: The Card Game, jogo descontinuado pela Fantasy Flight e que era o único totalmente competitivo da família.

Arkham LCG possui uma grande carga narrativa. Um cenário é dividido em Atos e Agendas. A missão dos investigadores é reunir pistas para avançar os Atos e desvendar os mistérios. Enquanto isso, as forças ocultas dos Mitos buscam reunir “perdição” para avançar as Agendas. Cada Investigador tem a seu alcance posses, aliados, feitiços e diversas formas de criar seu baralho e tentar sobreviver à loucura.

Antes de uma campanha, o jogador deve montar seu baralho, de acordo com determinadas limitações descritas no verso da carta de investigador, como cartas de classe permitidas e o tamanho do baralho. O cenário também é montado, composto dos baralhos de Atos e Agendas, e das Localizações que devem ser investigadas para obter pistas. Uma rodada é dividida em quatro fases: a fase de Mitos, na qual a Agenda recebe um marcador de perdição e os jogadores devem comprar, cada um, uma carta de encontro representando perigos e inimigos; a fase de investigação, na qual cada jogador pode realizar até três ações, dentre as quais estão obter recursos, comprar cartas de seus baralhos, investigar, combater monstros e engajar contra inimigos; a fase dos inimigos, quando os mesmos caçam e atacam os investigadores e uma fase de preparação na qual os investigadores ganham um recurso e uma carta e se preparam para os desafios da rodada seguinte.

Quase tudo no jogo, de combates a investigações, é feito através de testes. Cada investigador possui quatro atributos (Determinação, Intelecto, Combate e Agilidade) e o teste é feito contra uma dificuldade. O jogador compara os valores e pode “investir” cartas da mão para aumentar o valor do atributo. Um ponto chave é a “sacola do caos”, na qual existem diversos marcadores que podem dar bônus ou penalidades ao valor final do teste – ou seja, o resultado final precisa ser muito bem calculado, pois nem sempre será garantido.

Um fator que chama a atenção em Arkham LCG é a forma como ele quebra as barreiras que separam “cardgames” de “RPGs”. Cada cenário, Ato e Agenda pode possuir várias ramificações, exigir que os jogadores tomem decisões e façam escolhas, e são diretamente influenciados por estas e pelos resultados das partidas anteriores. Um exemplo é o final do primeiro cenário da caixa base, “The Gathering”, onde o investigador chefe deve decidir entre queimar ou não sua própria casa. Ao decidir pelo sacrifício, a carta correspondente à casa dele, chamada convenientemente de “Your house”, é removida do cenário seguinte, ficando indisponível. Isso permite também que o mesmo cenário tenha diversas formas de terminar, o que aumenta bastante a rejogabilidade. Você pode jogar os cenários de forma isolada, ou reuni-los em campanhas fechadas, com cada cenário influenciando o seguinte.

Cenários

Outro fator que une cardgame e RPG é a evolução dos investigadores. No final de cada cenário, os jogadores ganham experiência, que pode ser usada para comprar novas cartas, ou mesmo versões melhoradas de cartas de nível mais baixo. Cada investigador possui também fraquezas que podem surgir em momentos inoportunos, tal qual aquele mestre de RPG sacana que clama a desvantagem do seu personagem nos piores momentos. Ou seja, você sente que seu investigador não é só um avatar de jogador, mas uma importante peça da narrativa e do jogo como um todo.

Mas como nem tudo são sucessos nas investigações, Arkham LCG tem seus problemas. A produção é primorosa, como praticamente qualquer jogo da Fantasy Flight. Entretanto, o jogo possui o já conhecido “excesso de tokens” da editora- são marcadores diferentes para vida, sanidade, recursos, pistas e perdição. Não achando suficiente, temos a sacola do caos na qual ficam os diversos tokens que podem ajudar ou dificultar a resolução de testes, e ter que mexer nela a cada teste feito pode diminuir um pouco a velocidade do jogo (ainda assim, Arkham LCG é um jogo rápido, e um cenário pode ser terminado em pouco mais de uma hora). O fator narrativo cria a necessidade de organizar cada cenário antes da partida, sendo um contraponto a outros jogos, nos quais é só puxar o baralho e jogar.

Ainda existe aquele fator que eu sinceramente nunca sei se é positivo ou negativo: Arkham LCG é um cardgame, e como tal precisa das expansões. O formato LCG alivia o custo, mas ainda assim o jogador possui possibilidade zero de deckbuilding somente com uma caixa básica (com duas já melhora). As expansões apresentam mais cartas de jogador e cenários que criam as campanhas – cada “Ciclo” que se inicia com uma caixa Deluxe e é complementado por seis “Mythos Packs” forma uma campanha completa e fechada.

“The Dunwich Legacy”, primeira expansão Deluxe de Arkham LCG, contendo 5 novos investigadores, diversas cartas de jogador e os dois primeiros cenários da nova campanha.

Considerações finais
Arkham Horror: The card game tem brilhado enormemente no cenário internacional. Em pouco tempo, conquistou os fãs da franquia Files com sua narrativa empolgante e surpreendente, e suas mecânicas simples. Apesar de pequenos deslizes – em sua maioria compreensíveis pela dinâmica e formato – tem subido sem fazer escalas nos rankings de sites mundo à fora, e vai agradar fãs de jogos temáticos, de cooperativos e de cardgames da mesma forma.

Basta que a loucura não domine sua mente antes disso.

Pontos positivos
– Qualidade impecável de produção, com destaque para as ilustrações
– Carga narrativa surpreendente e interessante e a quebra da parede entre cardgame e RPG
– Expansões adicionam rejogabilidade com novos investigadores, novos cenários e campanhas e mais possibilidades de criação de decks

Pontos negativos
– Setup, apesar de fácil, pode ser chato de fazer em todo cenário
– Tokens demais; a sacola do caos inclusive precisa ser montada antes do jogo, o que é bem chatinho de fazer (mas já existem apps que simulam a sacola)
– Necessidade de expansões, como em qualquer cardgame, evoca o investimento constante (o que é levemente agravado devido ao fator de cada campanha ser dividida entre os Mythos Packs do Ciclo)